Parece-me bem falar de algumas tentações que tenho visto haver ao princípio – algumas tenho-as eu tido – e dar alguns avisos sobre coisas que julgo necessárias.
1. Procure-se andar ao princípio com alegria e liberdade:
Ter grande confiança, pois convém muito não apoucar os desejos, mas esperar de Deus que, se nos esforçamos, pouco a pouco – embora não seja logo – poderemos chegar aonde muitos santos chegaram com Seu favor.
Quer Sua Majestade e é amigo de almas animosas, logo que andem com humildade e sem nenhuma confiança em si. Não tenho visto a nenhuma destas que se fique cá por baixo neste caminho [de oração], nem a nenhuma alma cobarde – sob capa de humildade – que ande em muitos anos o que essas outras andam em muito poucos.
Estas primeiras determinações são grande coisa, ainda que, neste primeiro estado, seja preciso ir-se detendo e ater-se à discrição e parecer do mestre; mas há-de olhar-se a que seja tal, que não ensine a andar como sapos nem se contente com que a alma se afaça a só caçar lagartixas. A humildade, no entanto, sempre à frente para se compreender que não hão-de vir – estas forças – das nossas.

[2.] Outra tentação que há logo muito de ordinário, é desejar que todos sejam muito espirituais, pois começam a saborear o sossego e o lucro que ele traz. Desejar isto não é mal; o procurá-lo é que poderá não ser bem se não há muita discrição e dissimulação para proceder de modo a não parecer que querem ensinar; porque neste caso, quem quiser fazer algum bem, precisa de ter as virtudes muito fortes para não causar tentação aos outros.
[3.] Dá ainda outra tentação que é sentir pena dos pecados e faltas que se vêem nos outros. É que todas elas vêm com capa de zelo pela virtude que é mister entender e andar com cuidado. Inquieta isto tanto que impede a oração, e o maior dano é pensar que é virtude e perfeição e grande zelo de Deus. Procuremos, pois, atender sempre às virtudes e às coisas boas que virmos nos outros e tapar seus defeitos com os nossos grandes pecados. E com esta maneira de agir – embora não se faça logo com perfeição – ganha-se uma grande virtude, que é: de termos a todos por melhores do que nós.
[4.] Pois voltando aos que discorrem, [fácil e grande capacidade de reflectir] digo que não se lhes vá todo o tempo nisso; imaginem-se diante de Cristo e, sem cansaço do entendimento, estejam falando e regalando-se com Ele, sem se cansarem a compor razões, mas apresentando-Lhe necessidades e a razão que Ele tem para não nos sofrer ali; uma coisa a um tempo e outra a outro, para que se não canse a alma de comer sempre o mesmo manjar. Estes são muito gostosos e proveitosos – se o paladar se acostuma a comer deles – e trazem consigo grande sustento para dar à alma vida e grandes lucros.
– [por exemplo] ponhamo-nos a pensar num passo da Paixão, digamos, o de quando o Senhor estava atado à coluna. Anda o entendimento rebuscando o que ali há a considerar: as grandes dores e pena que Sua Majestade teria naquela soledade e outras muitas coisas que, se o entendimento é vivo, poderá deduzir daqui. Este é o modo de oração por que todos hão-de começar e continuar e acabar; é mui excelente e seguro caminho, até que o Senhor os leve a outras coisas sobrenaturais.
– mas, no entanto, há muitas almas que tirarão mais proveito de outras meditações do que na da sagrada Paixão pois, assim como há muitas moradas no Céu, há muitos caminhos. Algumas pessoas aproveitam considerando-se no inferno, outras no Céu – e afligem-se em pensar no inferno – outras na morte. Algumas, se são ternas de coração, doem-se muito de pensar sempre na Paixão e regalam-se e tiram fruto em contemplar o poder e a grandeza de Deus nas criaturas e o amor que nos teve, o qual se manifesta em todas as coisas. E é admirável maneira esta de proceder não deixando, no entanto, muitas vezes a Paixão e vida de Cristo, que é donde nos veio e vem todo o bem.
[4.] Embora isto do conhecimento próprio jamais se deva deixar, não há alma tão gigante que não tenha muitas vezes de tornar a ser menino e de mamar (e isto jamais se olvide e quiçá o direi mais vezes, porque importa muito). É que não há estado de oração tão subido que não seja muitas vezes necessário tornar ao princípio. E isto dos pecados e conhecimento próprio é o pão com que todos os manjares se hão-de comer, por delicados que estes sejam, neste caminho de oração e sem este pão elas não se poderiam sustentar. Mas há-de comer-se com conta e medida. Depois que uma alma se vê já rendida e entende claramente que de si não tem coisa boa, e se sente envergonhada diante de tão grande Rei, e vê o pouco que Lhe paga para o muito que Lhe deve, que necessidade há de gastar aqui o tempo? Mas sim irmos a outras coisas que o Senhor nos põe diante e não há razão para que as deixemos, pois Sua Majestade sabe melhor do que nós o que nos convém comer.